domingo, 9 de outubro de 2022

As tigelas na casa

 



Vou dizer o que são estas tigelas. Mas primeiro, espera, desvia-te um pouco. Deixa passar a multidão. Os sentidos ficam embrutecidos à sua passagem. Vamos aguardar junto ao muro de pedra, à sombra das tílias. Daqui avista-se uma grande extensão do olival que termina num barreiro onde costumávamos entreter a enxada na busca de um veio mais puro. Vínhamos pela vereda acima, carregados com as sacas cheias de terra penduradas num varapau. Quando digo nós, quero dizer outro tempo, outro barro.

Os pés calçavam um chão aparentemente menos transitório. Nesse aspecto, estamos agora mais lúcidos. Ou deveríamos estar. A maior velocidade dos acontecimentos, ao mesmo tempo que torna a percepção da transitoriedade mais evidente, insensibiliza-nos pela constante renovação da novidade. De repente, estamos no meio do rebanho. Distraídos, com o olhar preso no reluzir das ramagens, não o vimos chegar. Vamos pular. O muro não é alto.

Começam como uma brincadeira, como todos os começos, as tigelas. Uma forma prazerosa de ocupar as mãos. Na verdade, todo o corpo. Como uma ilha que se vislumbra na neblina, a bordo de um sonho mal acordado. Pode ser tanta coisa, uma pela de barro.

No início é isso, é terra. Terra que se avista, que se alcança com o corpo, onde tudo pode acontecer. Terra e água. Uma matéria de vasta plasticidade.

É verdade que tiveram uma infância mastigada pelo deslumbramento. A cada pequeno passo, saturado da intensa multiplicidade de escolhas, anunciava-se a descoberta de um novo continente, e, na lenta metamorfose das estações, a surpresa da noite acontecia num sussurro de melodias cheias de segredos e mistério. Quero acreditar que, ainda agora, na matéria densa que o fogo maturou, é possível ouvir. Escuta, aquele penedo que parece um ombro coberto de líquenes, aquela encosta escarpada sulcada pelas chuvas, se deixarmos assentar um silêncio de osso e assombro, podemos ouvir.

Pode ser tanta coisa. Queria contar sobre os outros caminhos possíveis, alguns que percorri. Não existe um caminho certo, sabes. Nada nos obriga a permanecer na mesma linha de pensamento. Podemos descer por aqui até à cidade. Mais à frente, vamos encontrar a estrada. E ainda que tomemos essa direcção, podemos sair a qualquer momento. As mãos aprendem a obedecer, a maior parte das vezes. É nisso que a brincadeira se transforma, em obediência.

Por outro lado, na cidade, as máquinas aprendem a imaginar a cidade. É interessante observá-las a evoluir para formas cada vez mais simples e complexas. De tal maneira simples que uma criança as consegue manusear e, ao mesmo tempo, de tal maneira complexas que só elas próprias conseguem reproduzir. É um som familiar, não é? Estamos próximos da estrada. Também por aqui havia um barreiro. Uma terra roxa pouco plástica, boa para misturar e conferir estrutura à construção dos grandes cântaros.

As tigelas não têm muitas exigências. Com qualquer barro se pode fazer uma tigela.

Naturalmente, as características da matéria prima vão condicionar a abordagem. Por exemplo, uma memória rica em detalhes, vai, certamente, produzir uma matriz útil à realização de boas superfícies espelhadas. Estás a seguir? Esta ladeira é bastante íngreme e escorregadia. Já nem sei do que estava a falar. As palavras secam muito depressa. Não são como o barro. As palavras dizem-se, escrevem-se, e logo se empertigam de sólida compostura, projectando uma sombra de lenta dança circular a espalhar significados.

O barro, direi que é mais humilde. Uma palavra com arremessos pouco distantes do que pretendo significar.

Deste ponto vê-se a cidade. Ali ao fundo, a estrada. Se fizermos um pequeno desvio, podemos passar pela velha olaria do Mestre. Parece que há um projecto, com propósitos turísticos, para requalificar o lugar. Estás a ver a ideia, se já não consegues vender cântaros, tenta vender a memória dos cântaros. Ocupa menos espaço, e, bem gerido, poderá dar mais retorno financeiro. Transmite-se um pouco da cultura local tradicional. Vai ser giro. As pessoas vão poder exprienciar um pouco de lama nas mãos. Depois, poderão sentar-se na esplanada a beber um copo num copo de barro. Que não é barro, é cerâmica. Não vamos aborrecê-los com detalhes. Anda, vamos passar por lá. Está quase tudo em ruínas, mas, o que resta, ainda não foi plastificado.

O pior plástico não é o que anda pelos oceanos, os rios e terrenos, um pouco por tudo o lado. Que, por si, já é mau. Não propriamente o plástico, ou melhor, sim, o plástico assim espalhado pelas mãos desatentas, ignorantes, ou, quem sabe quem, criminosas, esse "descuido" é bastante mau. Mas o pior plástico, dizia, a meu ver, é outro, é aquele que plastifica o pensamento. É este plástico que nos impede de ver as arestas com nitidez. Por exemplo, a transição ecológica, um plástico verde muito bonito, ou, a transformação digital, com reflexos iridescentes, a liberalização dos mercados, com a sua falsa transparência, ou ainda, o profundo azul da globalização, sei lá quantos mais destes polietilenos são aplicados a torto e a direito, sobre quase tudo, como uma pele sintética que encobre a real natureza das coisas.

Estou a afastar-me das tigelas. Com tudo isto, passámos já a olaria. Não faz mal, voltamos depois. Beberemos um copo à memória do Mestre, num copo de cerâmica. Aí está a estrada.

Vamos esperar pelo autocarro nesta paragem e talvez, assim por brincadeira, como numa canção, talvez nos apareça o comboio. Não te aborreças, vou agora falar das tigelas. 

Uma tigela é uma tigela, nada há de mais simples. O segredo está nos detalhes. Não estou a dizer que é uma coisa escondida. Chamo-lhe segredo porque são como que murmurados, os detalhes. São ditos numa voz suave, com longas pausas de silêncio, por vezes. Outras, parecem enormes baleias submersas num contínuo discurso sem aparente necessidade de ar. Sim, por vezes os detalhes estão submersos. É preciso mergulhar. É necessário ter alguma preparação, ou algum equipamento de apoio. Mas aí, estamos já a considerar tigelas de algum fôlego. Ou melhor, para este nível de detalhe, submerso a grande profundidade, a tigela tem de ter espessura. Atenção, não tem de ser grossa. As tigelas podem ter, quase direi, infinitas configurações. Mas que sei eu do infinito? É uma das tais palavras todas empertigadas que, neste caso, densa, usamos tal qual o chumbo contra as radiações do mistério.

Mais espessura, como mais para dentro. Uma espessura para dentro. Uma tigela pode ser fina e leve e, no entanto, revelar-se de uma espessura vertiginosa. Uma tigela pode ser gorda e pesada e aparentar estar suspensa sobre a mesa. Ou pode ser maravilhosamente gorda e pesada. Os detalhes estão à vista, ao toque. Estão no som que produzem quando vazias, quando cheias. Quando sós ou empilhadas. Simultaneamente simples e complexas, as tigelas procuram ensinar-me a humildade.

No entanto, teimo em rodear-me de palavras. Arremesso-as por aqui e por ali. Parto-as, faço traços desconexos e depois, empertigadamente, dou-lhes o nome de texto, ou mesmo, por vezes, quando a mão desliza a caneta na abstração rasa do silêncio, no limite extremo dos significados, chamo-lhes desenhos. Mas sim, depois, é no barro que a respiração se aquieta. Particularmente na forma côncava, básica, de uma mão estendida para receber e dar.

Durante o processo de trabalho, ao mesmo tempo que dou forma à massa de argila, sucede que sinto o sereno sopro da graça. Não sei precisamente o que é, mas estou convicto que fica impresso na matéria.

Não creio que haja maneira de plastificar isso, pelo contrário, até há quem consiga, ironicamente, imprimi-lo no plástico. Não me interrompas agora, por favor. Eu sei que, afinal, não é uma estrada, nem uma linha férrea, o que ouvimos lá atrás. Bem vejo agora. É um rio que funciona como se fosse um caminho, e o apeadeiro é, a bem dizer, um embarcadouro, uma casa junto ao rio, com um pequeno cais. Acho que podemos ficar por aqui o tempo que for necessário. Não, não é estranho, é inesperado. Talvez um pouco estranho. Acredita que também estou surpreso. As coisas surgem assim, aparentemente do nada. As mãos acariciam a matéria como se acariciassem outras mãos, e por elas são acariciadas. Nisto, a forma surge, a vida palpita, insurge-se contra a entropia. Não exactamente como um cristal, ainda que igualmente extraordinário, mas sob a pressão de outras forças, direi menos dramáticas, mais obscuras, intrincadas, herméticas. Pois, são as palavras a conquistar o momento.

As tigelas não precisam de palavras. São pensamento puro. Entremos na casa.

Devo dizer que, apesar de estar verdadeiramente surpreso com o evoluir dos acontecimentos, já estive aqui algumas vezes. Deste lado, há uma mosca a zumbir junto ao vidro. Mas a casa é a mesma. Estamos entrelaçados. A luz do entardecer entra pelas janelas da sala. Chamo a atenção, desta vez, para a sombra das ramagens a tremular sobre o pavimento de madeira. Aqui, neste momento, não há rebanhos. Sobre uma grande mesa branca estão, entre outras, as tigelas que mencionei há pouco. Uma fina e leve, outra gorda e pesada. Diversas em tamanho, textura e cor, elas não precisam de palavras, já o disse. O entrelaçamento que propõem é de outro tipo.

2 comentários:

  1. Agradável surpresa a leitura deste texto. Olhava a tua tijela e sabia tão pouco sobre ela. Voltarei a ler o texto, com mais atenção.

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  2. Escrevi tijela :D Hesitava se diria taça e escrevi tijela.

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