domingo, 22 de janeiro de 2023

A última tigela

 


Muitas vezes, sinto que estou a fazer a última tigela. Isto, porque faço-as frequentemente em pequenas séries. Começo, de uma forma geral, por escolher das pastas já feitas aquela que melhor se adequa ao objectivo. Ou então, num momento de improviso, misturo argilas diversas e amasso à mão. Essa é, por vezes, a principal condicionante do número de tigelas projectadas. De qualquer maneira, e independentemente de serem quatro ou vinte e oito, quando chego àquela que sei ser a última da série, há uma tendência em apressar-me para terminar o processo repetitivo. Mas esta inclinação é imediatamente contrariada por uma vaga sensação de antecipada nostalgia pelo abandono de um objecto que se tornou familiar. Ao mesmo tempo, o cuidado em não prolongar demasiado o acabamento desta específica peça empurra-me para o fim do que parece ser a última tigela.

Compadeço-me daqueles que não encontram qualquer prazer numa vida de trabalho. Também me compadeço por aqueles que só no trabalho encontram uma qualquer forma de prazer.
Encontrar equilíbrio é um exercício dinâmico. Exige esforço e descontracção. Uma permanente mudança de estados.  

Existe na natureza uma força oposta à força vital. Um vector de tensão potencial que tende para a imobilidade. O chamado menor esforço. Assim, a inesgotável sede de energia, que é característica da vida, é naturalmente contrabalançada pela constante lei do menor esforço. Mas a expressão vital encontra sempre um modo de contornar, romper, ultrapassar os obstáculos e exceder os limites impostos. Como e porquê, é um mistério. Uma palavra pouco científica, mas que retrata com exactidão o quanto sabemos. Falo por mim, claro, que já ando nisto alguns anos e, francamente, parece uma frase feita, mas é verdade, sei cada vez menos. 
 
Portanto, é isto. Uma força vital empurra-me para a mesa de trabalho, enquanto, numa qualquer parte do cérebro, um telegrama urgente é lido num sussurro ansioso: O mundo precisa de mais tigelas. Mãos à obra! Arregaço as mangas. Mas atenção, novo telegrama: Havia uma interrogação na mensagem anterior. Não podem ser umas tigelas quaisquer. Todo o processo tem de passar pelo caótico crivo das leis criativas, sobre as quais, já o mencionei, sei muito pouco. Assim, ao mesmo tempo que me apresso a corresponder às necessidades do mundo, vou hesitante, a cada passo, numa constante incerteza. De modo que, ao fim de todas e cada uma das séries, deparo-me com esta ilusória sensação da última tigela. Sei que é uma ilusão, mas que sei eu? Digamos que, num esforço de trabalho imaginativo, consigo contrariar a força que tende obrigar-me a uma leitura linear do tempo, estarei a resvalar perigosamente para um desconcerto das leis naturais? Ou estarei a aproximar-me de um outro tipo de entendimento? 

Da inutilidade de todas estas considerações, as tigelas parecem sorrir com um ligeiro traço de ironia. Da primeira à última, qualquer que seja a sua ordem na linha de produção.




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