Foram nove dias de uma considerável afluência de visitantes... Quero agradecer as simpáticas palavras daqueles que pararam por momentos na banca das Tigelas do Algarve. Deixo aqui uma amostra, com o texto em pdf, sem, no entanto, a textura das amêndoas e o cheiro das alfarrobas...





Tigelas do Algarve - PDF (o link nem sempre funciona, por isso vou ter de colocar o texto aqui:
Centenas de taças, potes, copos e
tigelas saíram do barro através das minhas mãos. Modeladas na roda de oleiro,
ou feitas com lastras, ou com rolos, ou a partir de uma bola de argila que se
abre entre a concha da mão e o polegar da outra. Trabalhadas em cada fase da
sua gradual secagem até ao osso. Por vezes até ao excesso, na busca de uma voz
que murmure chega.
Depois, na sedimentação das
prateleiras, ficam a aguardar a metamorfose do fogo. O tempo que atravessam não
é sempre o mesmo. Algumas apresentam uma textura de décadas, um carácter
retorcido, deformado, amaciado pela erosão. Estaladas, quase em ruínas,
incapacitadas de reter a água, estão próximas da linguagem de uma outra pele.
Outras, parecem nascidas, não do calor,
mas de uma fria determinação. Com o inequívoco propósito de silenciar uma
inquietação que extravasa, são contidas.
Outras ainda, banhadas de uma luz
cicatrizada, remendada no próprio tecido das mãos, afinal todas elas, são o
colo onde repousa uma desassombrada ternura.
E do Algarve porquê? Que identidade é
esta? O Algarve. Um espaço físico quase rectangular, a sul desta outra
identidade, de espaço físico também rectangular, que dá pelo nome de Portugal.
A esta associamos uma ideia de mar.
Quanto ao Algarve, as ressonâncias
também são marítimas. Com um cheiro a protector solar. O resto, que é muito,
demasiado para uma curta visita, resume-se a um conceito de região.
Pretende-se, por exemplo, com esta ideia do artesanato, atribuir-lhe características culturais. E dado que a expressão física desse conceito é um território no qual se inclui toda a correspondente fauna e flora, estas tigelas são assim rotuladas do Algarve.
Pretende-se, por exemplo, com esta ideia do artesanato, atribuir-lhe características culturais. E dado que a expressão física desse conceito é um território no qual se inclui toda a correspondente fauna e flora, estas tigelas são assim rotuladas do Algarve.
No entretanto, a verdadeira questão que
se põe ficou para trás. Na idealização daquilo que é o artesanato regional
(isto para não mergulhar em águas ainda mais turvas, a saber, na própria
definição de artesanato). E ficou para trás em mais do que um sentido.
Para encontrar uma ponta a esta meada,
é preciso calçar as botas mágicas de um José Hermano Saraiva, e recuar aos
luminosos dias em que sobre esta terra começaram a surgir os turistas.
Procurei, mas não havia o meu tamanho. Dizem que o melhor da produção vai todo
para fora. Que isto é um povo que não sabe apreciar o que tem de bom (à medida
que se puxam as pontas, a meada aparenta crescer em tamanho e enleio).
Apetece-me voltar ao início. Com a
enxada na mão e uma saca de serapilheira na outra. Lado a lado com o Mestre
Rodrigues, entrar pelos campos até àquele sítio do barrocal onde um veio,
exposto por outras gerações de oleiros, oferecia a matéria-prima a quem a
quisesse trabalhar. Voltar à lenha, empilhada às toneladas para arder no vagar
intenso das horas que se estendiam por dias…
Cerâmica contemporânea. Artesanato
regional. Olaria. Vestígio arqueológico. Até onde recuar? Um sopro divino
insuflado pelas narinas. A ilusão da eternidade na respiração do momento.
Talvez seja melhor descalçar esta bota.
Não é definitivamente o meu tamanho.
Estas Tigelas do Algarve situam-se na
fronteira do absurdo. Provêm da humilde e franca necessidade de alimentar um
sonho.
Deveriam talvez designar-se Tigelas de Mendicidade do Algarve. E em subtítulo: "Uma tigela em cada lar (com tradução em inglês e em
mandarim), para que nunca falte o essencial".
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