Vou dizer o que são
estas tigelas. Mas primeiro, espera, desvia-te um pouco. Deixa passar
a multidão. Os sentidos ficam embrutecidos à sua passagem. Vamos
aguardar junto ao muro de pedra, à sombra das tílias. Daqui
avista-se uma grande extensão do olival que termina num barreiro
onde costumávamos entreter a enxada na busca de um veio mais puro.
Vínhamos pela vereda acima, carregados com as sacas cheias de terra
penduradas num varapau. Quando digo nós, quero dizer outro tempo,
outro barro.
Os pés calçavam um
chão aparentemente menos transitório. Nesse aspecto, estamos agora
mais lúcidos. Ou deveríamos estar. A maior velocidade dos
acontecimentos, ao mesmo tempo que torna a percepção da
transitoriedade mais evidente, insensibiliza-nos pela constante
renovação da novidade. De repente, estamos no meio do rebanho.
Distraídos, com o olhar preso no reluzir das ramagens, não o vimos
chegar. Vamos pular. O muro não é alto.
Começam como uma
brincadeira, como todos os começos, as tigelas. Uma forma prazerosa
de ocupar as mãos. Na verdade, todo o corpo. Como uma ilha que se
vislumbra na neblina, a bordo de um sonho mal acordado. Pode ser
tanta coisa, uma pela de barro.
No início é isso,
é terra. Terra que se avista, que se alcança com o corpo, onde tudo
pode acontecer. Terra e água. Uma matéria de vasta plasticidade.
É verdade que
tiveram uma infância mastigada pelo deslumbramento. A cada pequeno
passo, saturado da intensa multiplicidade de escolhas, anunciava-se a
descoberta de um novo continente, e, na lenta metamorfose das
estações, a surpresa da noite acontecia num sussurro de melodias
cheias de segredos e mistério. Quero acreditar que, ainda agora, na
matéria densa que o fogo maturou, é possível ouvir. Escuta, aquele
penedo que parece um ombro coberto de líquenes, aquela encosta
escarpada sulcada pelas chuvas, se deixarmos assentar um silêncio de
osso e assombro, podemos ouvir.
Pode ser tanta
coisa. Queria contar sobre os outros caminhos possíveis, alguns que
percorri. Não existe um caminho certo, sabes. Nada nos obriga a
permanecer na mesma linha de pensamento. Podemos descer por aqui até
à cidade. Mais à frente, vamos encontrar a estrada. E ainda que
tomemos essa direcção, podemos sair a qualquer momento. As mãos
aprendem a obedecer, a maior parte das vezes. É nisso que a
brincadeira se transforma, em obediência.
Por outro lado, na
cidade, as máquinas aprendem a imaginar a cidade. É interessante
observá-las a evoluir para formas cada vez mais simples e complexas.
De tal maneira simples que uma criança as consegue manusear e, ao
mesmo tempo, de tal maneira complexas que só elas próprias
conseguem reproduzir. É um som familiar, não é? Estamos próximos
da estrada. Também por aqui havia um barreiro. Uma terra roxa pouco
plástica, boa para misturar e conferir estrutura à construção dos
grandes cântaros.
As tigelas não têm
muitas exigências. Com qualquer barro se pode fazer uma tigela.
Naturalmente, as
características da matéria prima vão condicionar a abordagem. Por
exemplo, uma memória rica em detalhes, vai, certamente, produzir uma
matriz útil à realização de boas superfícies espelhadas. Estás
a seguir? Esta ladeira é bastante íngreme e escorregadia. Já nem
sei do que estava a falar. As palavras secam muito depressa. Não são
como o barro. As palavras dizem-se, escrevem-se, e logo se empertigam de sólida
compostura, projectando uma sombra de lenta dança circular a
espalhar significados.
O barro, direi que é
mais humilde. Uma palavra com arremessos pouco distantes do
que pretendo significar.
Deste ponto vê-se a
cidade. Ali ao fundo, a estrada. Se fizermos um pequeno desvio,
podemos passar pela velha olaria do Mestre. Parece que há
um projecto, com propósitos turísticos, para requalificar o lugar. Estás a
ver a ideia, se já não consegues vender cântaros, tenta vender a
memória dos cântaros. Ocupa menos espaço, e, bem gerido, poderá dar mais
retorno financeiro. Transmite-se um pouco da cultura local
tradicional. Vai ser giro. As pessoas vão poder exprienciar um pouco
de lama nas mãos. Depois, poderão sentar-se na esplanada a beber um copo num
copo de barro. Que não é barro, é cerâmica. Não vamos
aborrecê-los com detalhes. Anda, vamos passar por lá. Está quase
tudo em ruínas, mas, o que resta, ainda não foi
plastificado.
O pior plástico não
é o que anda pelos oceanos, os rios e terrenos, um pouco por tudo o
lado. Que, por si, já é mau. Não propriamente o plástico, ou
melhor, sim, o plástico assim espalhado pelas mãos desatentas,
ignorantes, ou, quem sabe quem, criminosas, esse "descuido"
é bastante mau. Mas o pior plástico, dizia, a meu ver, é outro, é
aquele que plastifica o pensamento. É este
plástico que nos impede de ver as arestas com nitidez. Por exemplo,
a transição ecológica, um plástico verde muito bonito, ou, a
transformação digital, com reflexos iridescentes, a liberalização
dos mercados, com a sua falsa transparência, ou ainda, o profundo
azul da globalização, sei lá quantos mais destes polietilenos são
aplicados a torto e a direito, sobre quase tudo, como uma pele
sintética que encobre a real natureza das coisas.
Estou a afastar-me
das tigelas. Com tudo isto, passámos já a olaria. Não faz mal,
voltamos depois. Beberemos um copo à memória do Mestre, num copo de
cerâmica. Aí está a estrada.
Vamos esperar pelo
autocarro nesta paragem e talvez, assim por brincadeira, como numa
canção, talvez nos apareça o comboio. Não te aborreças, vou
agora falar das tigelas.
Uma tigela é uma tigela, nada há de mais
simples. O segredo está nos detalhes. Não estou a dizer que é uma
coisa escondida. Chamo-lhe segredo porque são como que murmurados,
os detalhes. São ditos numa voz suave, com longas pausas de
silêncio, por vezes. Outras, parecem enormes baleias submersas num
contínuo discurso sem aparente necessidade de ar. Sim, por vezes os
detalhes estão submersos. É preciso mergulhar. É necessário ter
alguma preparação, ou algum equipamento de apoio. Mas aí, estamos
já a considerar tigelas de algum fôlego. Ou melhor, para este nível
de detalhe, submerso a grande profundidade, a tigela tem de ter
espessura. Atenção, não tem de ser grossa. As tigelas podem ter,
quase direi, infinitas configurações. Mas que sei eu do infinito? É
uma das tais palavras todas empertigadas que, neste caso, densa,
usamos tal qual o chumbo contra as radiações do mistério.
Mais espessura, como
mais para dentro. Uma espessura para dentro. Uma tigela pode ser fina
e leve e, no entanto, revelar-se de uma espessura vertiginosa. Uma
tigela pode ser gorda e pesada e aparentar estar suspensa sobre a
mesa. Ou pode ser maravilhosamente gorda e pesada. Os detalhes estão
à vista, ao toque. Estão no som que produzem quando vazias, quando
cheias. Quando sós ou empilhadas. Simultaneamente simples e
complexas, as tigelas procuram ensinar-me a humildade.
No entanto, teimo em
rodear-me de palavras. Arremesso-as por aqui e por ali. Parto-as,
faço traços desconexos e depois, empertigadamente, dou-lhes o nome
de texto, ou mesmo, por vezes, quando a mão desliza a caneta na
abstração rasa do silêncio, no limite extremo dos significados,
chamo-lhes desenhos. Mas sim, depois, é no barro que a respiração
se aquieta. Particularmente na forma côncava, básica, de uma mão
estendida para receber e dar.
Durante o processo
de trabalho, ao mesmo tempo que dou forma à massa de argila, sucede
que sinto o sereno sopro da graça. Não sei precisamente o que é,
mas estou convicto que fica impresso na matéria.
Não creio que haja
maneira de plastificar isso, pelo contrário, até há quem consiga,
ironicamente, imprimi-lo no plástico. Não me interrompas agora, por
favor. Eu sei que, afinal, não é uma estrada, nem uma linha férrea,
o que ouvimos lá atrás. Bem vejo agora. É um rio que funciona como
se fosse um caminho, e o apeadeiro é, a bem dizer, um embarcadouro,
uma casa junto ao rio, com um pequeno cais. Acho que podemos ficar por
aqui o tempo que for necessário. Não, não é estranho, é
inesperado. Talvez um pouco estranho. Acredita que também estou
surpreso. As coisas surgem assim, aparentemente do nada. As mãos
acariciam a matéria como se acariciassem outras mãos, e por elas
são acariciadas. Nisto, a forma surge, a vida palpita, insurge-se
contra a entropia. Não exactamente como um cristal, ainda que
igualmente extraordinário, mas sob a pressão de outras forças,
direi menos dramáticas, mais obscuras, intrincadas, herméticas.
Pois, são as palavras a conquistar o momento.
As tigelas não
precisam de palavras. São pensamento puro. Entremos na casa.
Devo dizer que,
apesar de estar verdadeiramente surpreso com o evoluir dos
acontecimentos, já estive aqui algumas vezes. Deste lado, há uma mosca a zumbir
junto ao vidro. Mas a casa é a mesma. Estamos entrelaçados. A luz
do entardecer entra pelas janelas da sala. Chamo a atenção, desta
vez, para a sombra das ramagens a tremular sobre o pavimento de
madeira. Aqui, neste momento, não há rebanhos. Sobre uma grande
mesa branca estão, entre outras, as tigelas que mencionei há pouco.
Uma fina e leve, outra gorda e pesada. Diversas em tamanho, textura e
cor, elas não precisam de palavras, já o disse. O entrelaçamento
que propõem é de outro tipo.